sexta-feira, 2 de maio de 2008

Entre o físico e o transcendente

A pensar na dimensão paralela onde se inscrevem os poemas
E nesse tempo distinto que não vem assinalado
no relógio, no calendário, na agenda
A pensar nesse estado especial de ser, mais do que estar a ser
A pensar em tudo o que dizemos nas nossas sessões de 4ª à noite
Que me retiram também do meu tempo
contado, calendarizado, agendado
E me fazem andar sem ver por onde ando
e chegar a casa sem saber quem me levou
A pensar na palavra com cheiro
E na magnólia desfolhada em letras
A pensar como na verdade a poesia mora algures
num tempo e espaço entre o físico e o transcendente
A pensar em tudo isto...envio mais um poema, dos muitos que gosto tanto


Sobre o Poema de Herberto Helder

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo.
Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

3 comentários:

Renato Roque disse...

Marlene, gosto muito de tudo o que escreve. Deste e dos outros textos

Não lhe si dizer porquê. Pela fluidez, pelo correr das águas entre duas paredes de granito?

Porque me toca, por que o entendo, mesmo sem o entender...

Renato

M. disse...

Obrigada Renato,

Estava agora mesmo a comentar um post do António relativamente à ideia de comentarmos nas nossas sessões (espero mesmo que não acabem por aqui) os nossos próprios escritos (os das gavetas, caixas e outros esconderijos).
E estava a comentar que tinha (não tenho tanto graças ao blog e às nossas tarefas para casa) pavor de mostrar o que escrevo. Talvez por ter que enfrentar de vez a realidade de que não escrevo bem.
Dizem que temos que ter autocrítica, mas a minha autocrítica nunca foi afinada para mim mesma. E chego a parecer pateta pois escrevo com vontade e porque sinto, mas ao ler o que escrevi não sei se gosto ou desgosto.
É bom ouvir que alguém gosta. Dá-me confiança para poder mostrar.

A. Roma disse...

Marlene, não sei se deu conta mas a sua introdução é um texto de grande cariz poético, quero dizer; tem força e cria uma dimensão e intimidade próprias.
E essa coisa da autocrítica, e de saber se gosto ou não gosto... neste caso, eu nunca tinha dado conta com essa luminosidade que isso tambem acontece comigo. Vale apena tentar perceber as razões de tal facto.