segunda-feira, 5 de maio de 2008

Textos de Isolina Carvalho

BAILADO DE OUTONO INCERTO

Eu cantarei de amor tão docemente
Como o silêncio inquieto
Rio que corre lentamente
Bailado de Outono incerto

Desta alma se faz o meu tempo
Desse tempo se faz meu pensar
Procuro no tempo que invento
Sem desistir de te encontrar

A lua cavalga os meus ventos
Por entre as montanhas partidas
E impactos de duro silêncio

Enquanto invento meu tempo
Construo as mágoas sofridas
Como chamas de um incêndio

Isolina Carvalho


AUSÊNCIAS

Vazia era a casa
Habitada de ausências
De roupas inúteis
De sapatos vazios e absurdos
No seu modo de estar
Á espera dos fantasmas
Que ninguém vê
Que se escutam e inventam
Pelos corredores sombrios
Duma memória distante
De alguém que se tornou ninguém
Na mentira de existir.
Tempestuosas memórias
De ventos agrestes
Cortantes como vidros
Em noites geladas
E ensurdecedores silêncios
Enchem de ruído a casa quase assombrada.
Tu vens dos confins do tempo
À luz branca dos relâmpagos
Facas levadas ao rubro
Rasgando o céu sombrio
As tuas vestes vermelhas
Arrastam-se pelo chão
Encharcado de chuva
Enquanto eu tombo em silêncio
No ponto crepuscular do não ser.

Isolina Carvalho


AROMA DO MAR E DE TI

Há muito que te espero
Em qualquer lugar
Sem que vislumbre luz ou presença
Mesmo anónima que seja
Mesmo que subtil aroma
De madrugada orvalhada
Ou vindo de mar distante
Sabor de fruto perdido
Nos confins do nada
Vogando em calmas águas
Empurrado por vento sibilinoque ri e chora
De ti e por ti
Em embarcação ondulante e frágil
Como barquinho de papel
Em fundo azul
Brincando com o mar

Isolina Carvalho


SOLIDÃO

Pergunto por ti ao vento
Procuro em tudo sinal de ti
Mas perdido estás algures no tempo
Para que não te encontre
Ou te sinta respirar perto
Iludo-me com o cheiro perfumado
Das flores silvestres que apanhaste para mim
Nos campos desertos e imensos
Povoados de papoilas vermelhas
Belas, berrantes e agressivas
Mas continuo só
Em solidão redobrada
Debaixo de um céu vazio, apesar de azul
Sem ti tudo é inútil e frio
Tudo é o nada
Levado à solidão máxima
De quem nada tem
Mas que também nada quer
Além de ti

Isolina Carvalho


O SER E O SONHO
OU O SONHO DE SER

Voltei-me à procura do tempo
Pendurado na imensidão dos séculos
Erigido em monumentos sumptuosos
E em ruínas de cidades.
Poéticas eram as folhas
Que caíam de árvores centenárias
Cobrindo de todo o chão da estrada
Nascida algures na história
Para estranhas caminhadas.
Uma imensa procissão
Lenta
Anónima
Silenciosa
Dirige-se em direcção ao sol
Objectivamente acrítica
Exasperantemente dócil!
Procuravam Deus – ouvi dizer
Olhei em volta mas não vi ninguém
Uma voz andava pelo espaço
Como que perdida
Como que sem dono.
Um menino soprava na água barquinhos de papel
Indiferente à procissão que passava
Indiferente ao mexer de folhas secas.
A enorme totalidade de silêncio
Arrastava-se indefinidamente
E o menino sentado junto à água
Percorreu os rios e fez-se ao mar
Num gigantesco barco de papel
Soprado por um monstro
Que o levava para longe.
Perdida a sintonia com o tempo
Navegava pela imensidão dos mares.
Mas o tempo voltou
E com ele uma nova história dos homens
Entretanto como crescera!
Olhou de novo a multidão anónima
Que continuava a sua inútil caminhada
Em direcção ao sol
Tinham-se enganado no caminho! - pensou
Já nada se pode fazer por eles
A não ser recria-los.

Isolina Carvalho


NOITE SOMBRIA

Eterna como a noite dos tempos
È a tristeza que passa por nós
No caminho ao entardecer
Senti-la na pele é afago
De suspiro mal sentido
De fogo que mal queima
De mar que se afasta para longe
E leva consigo a certeza
De eu nada ser
E do grito estrondoso
Do silêncio
Que parou no tempo
Do vento

Isolina Carvalho


DESPEDIDA

Não chames por mim porque parti
Deixei para trás vestes fulgurantes
Perdidas no caminho
Em manchas sedosas e vermelhas
Á mistura com folhas fascinantes
De todos os Outonos
A tarde é resplandecente da tua ausência
E eu fui-me embora

Isolina Carvalho

2 comentários:

M. disse...

Isolina,

Obrigada pelos poemas.
Gostei especialmente da sua "Despedida" e da forma como nela se despede: "A tarde é resplandecente da tua ausência
E eu fui-me embora". É bonito e, pelo menos para mim, parece um pouco invulgar...porque normalmente numa despedida é recorrente que o sujeito poético veja alguém partir e se refira a essa partida e ao sofrimento causado. No seu poema há quase que um subverter desse sentimento passivo de chorar por quem parte.
Gostei também da expressão "Bailado de Outono Incerto", porque mais uma vez é invulgar. E o Outono remete-me sempre para a própria hesitação do cair das folhas. Adjectivar o Outono de incerto reforça essa ideia.

Marlene

Joana Espain disse...

Obrigada também por esta partilha. Percepciono os poemas envoltos em cenários. Gostei bastante disso. E gostei muito deste dois versos:
'Enquanto eu tombo em silêncio
No ponto crepuscular do não ser.'

São muitos poemas e ainda os vou ler novamente. Mais uma vez obrigada.