sexta-feira, 6 de junho de 2008

COMO DESABITADO, O CORAÇÃO

Podem acontecer milagres. Podem
acontecer, e então a música decerto estará lá,
as palavras surgirão então, o sol, o girassol, a luz
que gira em torno de eixo feito de outra luz.
Poderia ser deus, ou paz.
Sentir. E de repente o mundo a acontecer,
o milagre do mundo a acontecer –
Milagres.

Lázaro em vestes brancas,
ausente o pó do quarto onde morara, entretecido
a morte e cheiros de planeta envelhecido.
A estrela nova nascendo dos seus pés.
Eis-me, em milagre e mudo.

Lázaro, a sua voz
em sinfonia muda

Ou a violência dentro do coração,
vibrando dentro do coração, ventrículo desfeito
por esta certeza: surgirão as palavras a seguir,
tão lisas e potentes como a música.
Milagres.

Podem acontecer.
Serão como a beleza das pirâmides, a
perfeição: onde pequeno seixo atravessado em falha?
Onde folha finíssima por entre as pedras, as siamesas pedras,
resistentes ao vento e ao deserto, a sua forma, a esplêndida,
a forma mais capaz de resolver enigmas?
Nessa folha finíssima, ou na pedra:
o mais puro milagre

Podem acontecer: junto ao deserto do gesto desumano,
o chicote, a tortura, o revólver bramando no vazio,
a mão que se detém, a boca que não grita,
Lázaro, a sua voz. Igual a música
Eis-nos, e mudos


O conhecer mais puro. O ar que traz os sons,
o tempo a transportar a luz. As estrelas já mortas,
de onde nascemos, a sua luz ainda. Aqui, junto de nós.
Habitar sem saber a mecânica quântica, igual
a habitação de coração.
O pensamento mais iluminado.
Saber da energia, o mais puro conceito.
Como Deus

Milagres. Podem ainda assim
acontecer ao longo do deserto, das fronteiras
erguidas, quase tocando o céu, como pirâmides.
De Rodes, o colosso dividindo, mas aberto aos navios,
o sândalo, a canela, especiarias, mais de mil cheiros,
saltos de gigante, pirateado o coração e o sol.
E ao seu lado, a voz humana:
Cal viva e uma paisagem de cacto e maravilhas.
Alguns

milagres.
Junto à vida amputada, à clave, à carne rota,
ao eminente apodrecer das cores:
capazes de fazer tombar ruídos longos,
e ficar só um timbre, mas mais que uma miragem,
um timbre, som de diapasão vibrando pelo tempo,
ou festa de Babel.
A estrela que morrera, a sua luz cruzando
o velho éter, já não éter, mas tempo

Anoitece, e está vermelho o sol ao lado das pirâmides.
Há-de ser isto o eixo de outra luz,
amigos a saudar-se, devagar,
ao lado do silêncio, hão-de surgir.
A eclosão de impérios. Cheiro o cheiro a marfim,
de sílabas tão brancas

Lázaro fala, pela primeira vez.
rouco de voz, primeiro, depois a sua voz:
Eis-me em milagre, mundo!

E o reconcerto abate-se na luz,
e um dedo basta para o reconforto. Um dedo.
As suas veias. Fio de cabelo ou pena de pavão
tornam-se sons, leve ponto de açúcar, se o vento de galáxia
os amacia. Podem então,
em longo desconserto


E encostada à música, essa palavra nova nascerá:
sina dos olhos que não viram nada,
mas com peixes ao fundo, multiformes,
a voz sem palco e tudo a acontecer,
Podem então, alguns deles então, acontecer,
a derradeira vez como
primeira vez -


Ana Luísa Amaral


Poema original, para todos.

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