quarta-feira, 30 de abril de 2008

Se...

Para a Ana Luísa, com um ramo de flores de pedido de desculpas... o trabalho de casa:


Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu não nasceria a escrever sonetos, mas morreria a saber juntar palavras em disjunções belas, que ficariam gravadas em pó e vento e circulariam sem poiso, beira nem eira por todos os sítios que, em matéria, não toquei.

Fluídos

Eu cantarei de amor tão docemente
Durante um momento fugaz e ardente
No ar ausente pairas incendiado,
Beijo, trémula latejando fado

Eu gritarei de amor tão loucamente
Quando te encontre em meu leito candente
Olhar febril recorre veemente
As tuas mãos em mim suavemente

Sinto o teu odor no peito trespassando
Os teus cabelos em mim sussurrando
Amor, com os teus sons inesperados

Relincham fluídos varando ocasos
Exaltando das profundezas, ondas
Batem convalescentes e redondas.

Duplicação da escrita criativa

Boa tarde

Gostei bastante de um poema de Pedro Tamen que começa assim:

'Por mais que tente escapar-me
com meneios de felino,
de nada vale esse charme:
não tarda e quino.'

E porque quinar quinamos todos que tal fazer um pouco mais do que gostamos e duplicar este curso de escrita criativa. Propunha que se discutissem disponibilidades hoje na aula (sessão:).

Até logo

Joana

terça-feira, 29 de abril de 2008

De volta ao Plano Inclinado

Os comentários da Marlene e da Ivone ao Plano Inclinado obrigaram-me a responder. Pretendo com esta resposta também reconhecer a justeza das críticas da Ivone à falta de rigor na minha escrita, motivada por um controlo grosseiro do plano e da velocidade das palavras. Acredito mesmo que foram o atrito e a inércia, que desprezei por simplificação, que fizeram com que o livro ainda não tivesse encontrado editor.



Inclinei-me por cima da escrita para a ler de soslaio, distraí-me, desequilibrei-me e caí por sobre o plano que ruiu com estrondo. Enfiei a haste dum h retardatário no olho direito e gritei bem alto "foda-se, foda-se", e com o balanço subi a cómoda, que virou de pantanas o quarto. Molero aproveitou a balbúrdia para entrar em cena e frisar bem que aquela deixa era dele. “Vai-te tu embora que esta história não é a tua”, ripostei eu com firmeza.

“É bem feito”, diz a Ivone, aproveitando também a minha fraqueza, “bem te disse para teres em conta o atrito e a inércia do h. Bem sabes que o h é uma letra preguiçosa que tende sempre a ficar para trás. Ele bem empina a haste para não tropeçar mas, mesmo assim, não pode competir com o o ou com o a.”

Mas o meu principal problema, depois de me ter levantado do meio dos escombros, era o que fazer com o plano ruído. “Talvez música concreta.” grita lá do fundo em tom de desafio Molero, que aproveitara a minha atrapalhação para se não ir embora.

These are merely instances

I am what is around me.

Women understand this.
One is not duchess
A hundred yards from a carriage.
These, then are portraits:

A black vestibule;
A high bed sheltered by curtains.

These are merely instances

Wallace Stevens, “Theory”



Muito boa tarde!

“Cá estamos nós outra vez, / (…) em frente do público da poesia”, como diria Nanni Ballestrini! Um belo poema, chamado “Pequeno louvor do público da poesia” (se quiserem, encontram em
http://www1.ci.uc.pt/poetas/poemas/nanni.htm)

Desculpem tanto silêncio, mas estive sem acesso à Internet desde Quinta-feira, cheguei no Sábado e ontem dei aulas todo o dia… Só agora tive um bocadinho para vir aqui, a este nosso site (ou sítio, como agora se diz) fantástico.

Tenho uma má notícia: a Ana Paula Tavares está doente, cheia de febre, e não pode vir amanhã. O Pedro Tamen, em contrapartida, está confirmadíssimo para dia 7 De Maio e, como já vos tinha dito, a Maria Teresa Horta vem à FLUP no dia 23, também de Maio. Amanhã digo que poemas gostava que lessem do Tamen (melhor, já posso ir dizendo: são os que estão num site que ele agora tem, que se chama

http://www.arscives.com/pedrotamen

O TPC, para responder à pergunta da Marlene, é assim: escrever várias frases a partir desse mote. Por exemplo:

“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu nasceria já a escrever sonetos que fossem perfeitos”, ou

“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu transformava tudo o que é soneto em verso livre”, ou

“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, Shakespeare escrevia a pé coxinho em vez de pé jâmbico”...

Brinco, claro, mas, mais uma vez, este exercício tem como objectivo o desbloqueamento :) :) Era engraçado se as frases estivessem todas relacionadas com poesia (e não se produzissem coisas do tipo “Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, toda a gente vivia em paz”).


Amanhã, estaremos só connosco. E falaremos dos poemas que escreveram, de poesia – e escrever-se-ão poemas também.

P.S. Recordam-se da sugestão do Renato de que lêssemos (analisássemos) um poema? Ninguém disse o que achava…

Dúvida

Olá a todos,

Obrigada pelos poemas que têm partilhado.
Sabe bem vir aqui ao fim do dia espreitar.

Em relação à nossa próxima sessão de poesia criativa tenho uma dúvida:

Não percebi bem a tarefa para casa. Tenho uma lista de frases todas iguais:
"Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu...."

o objectivo é obviamente completar, mas são 7 frases iguais....alguém me pode esclarecer sobre o que fazer?

Obrigada e até amanhã

domingo, 27 de abril de 2008

A Musa

Como viver com esta maçada,
E ainda lhe chamam Musa,
Dizem: "Tu e ela nos prados..."
Dizem: "O murmúrio divino..."
Abanará mais duro que uma febre,
E de novo o ano inteiro caladinha.

Anna Akhmátova

sábado, 26 de abril de 2008

O plano inclinado

Confesso que há muitos, muitos anos escrevi algumas coisas que se poderiam etiquetar como poemas. Mas isso foi há muito e desde aí, se tem havido alturas da minha vida em que escrevo, mais ou menos, tem sido sempre em prosa, ainda que alguns textos se possam (poderão?) identificar como prosa com alguns contornos poéticos.

É o caso do texto "O Plano inclinado" que não resisti a colocar aqui no blog. Era o primeiro texto de um livro de pequenas histórias, com o mesmo título, que está guardado, porque nunca consegui publicar. O texto poderá fazer sentido aqui porque um dos temas de discussão tem sido a escrita. Porque acontece a escrita e quando acontece. A minha "musa" é afinal um simples plano inclinado. Espero que vos divirta, pois apesar de antigo, continua a ser um dos meus textos de que ainda gosto.


O plano inclinado

Para Galileu Galilei,
por razões óbvias

Passou-me recentemente pelas mãos um velho livro de Física.
Ao folheá-lo, fui atraído pela descrição das experiências efectuadas pelo velho Galileu com o plano inclinado.
Galileu fez escorregar esferas de diversos tamanhos e diversos materiais por um plano inclinado com diferentes inclinações.
Estas experiências permitiram-lhe constatar que :
- a velocidade que as esferas atingiam não dependia do tamanho, nem do material de que as esferas eram feitas;
- a velocidade atingida só dependia da inclinação do plano, aumentando com esta.
Estes resultados obtidos por Galileu, que eu já conhecia, mas que estavam enterrados algures nas profundezas da minha arca de memórias, despertaram em mim uma ideia: se o plano inclinado tinha resultado tão bem, independentemente do material de que eram feitas as esferas, porque não experimentá-lo com palavras.
Experimentei então escrever num plano inclinado com esfero(gráfica). As palavras escorregavam a uma velocidade constante.
Reparei que quando inclinava mais o plano de escrita a velocidade das palavras aumentava até se tornar incontrolável e as palavras caírem em catadupa e se partirem, resultando em textos de pé quebrado e sem sentidos. Tentava então em vão colá-los e reanimá-los.
Ajustei por fim a inclinação do plano para conseguir uma velocidade ideal para as palavras, que me permitisse recolhê-las em ordem numa folha de papel branca, estendida com todo o cuidado ao fundo do plano.
Depois de acertar a inclinação certa, as palavras deslizavam umas após as outras e enchiam depressa a folha de papel.
Mas um outro problema surgiu de imediato: a mudança de folha de papel quando uma ficava cheia.
A princípio eu não era suficientemente rápido e algumas palavras perdiam-se. Tinha de procurá-las uma a uma, pois espalhavam-se pela mesa de trabalho e pelo quarto.
Ainda no outro dia, ao espreitar debaixo da cama, encontrei um ‘espelho’, coberto de cotão. Limpei-o cuidadosamente até de novo reflectir e coloquei-o em cima da cómoda. Utilizo-o todas as manhãs, quando me penteio.
Só depois de muitas tentativas e de muito treino consegui aperfeiçoar a técnica de mudar a folha de papel com a velocidade que a manobra exige.
Acabei também por me tornar exímio na arte de controlar a velocidade das palavras, à custa de pequenas variações da inclinação do plano.
Enquanto me não tornei perito nessa arte difícil da escrita em plano inclinado, tenho de confessar que fazia batota e preenchia o fim da folha com espaços.
Consegui desta forma aumentar a dimensão do meu quarto, à custa de uns quantos espaços perdidos, caídos fora da folha, que depois soprava para o chão.
Hoje, alguns anos depois de treino continuado, perco em média duas palavras por cem folhas de papel A4, sobretudo as palavras esdrúxulas com mais de quatro sílabas, que são as mais complicadas de controlar.
Com essas palavras perdidas estou a criar um reservatório de palavras difíceis, que poderei vir a utilizar no futuro, se as palavras me faltarem. Poderão ser muito úteis, especialmente se pretender vir a escrever poesia modernista.

As folhas cheias de palavras que preenchem este livro foram obtidas com a ajuda de um plano inclinado, calibrado para a língua portuguesa.






sexta-feira, 25 de abril de 2008

entrevista com Ana Luísa Amaral no Diário de Notícias de hoje, dia 25 de Abril.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Busque amor, novas artes, novo engenho

Busque amor, novas artes, novo engenho
para lá do seu velho desempenho
busque novos inadiáveis muros
e engenhosos caminhos seguros

Grande é o engenho do homem
que o eleva em pleno planar
sob a pedra que o caminho lança
essa que só vê a sua criança

E artes e amores em aperto
embalados em malas portáteis
aguardam entretanto conserto

Homem novo, velho, velho, velhinho
que roda sobre si com a terra
sempre à volta da mesma pedra








Vivam. Sobre a outra (mesma) pedra, um desses tais modernistas :) que se trai aqui em sentimento num poema de que gosto bastante:


No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade


Um grande abraço e um bom 25 de Abril.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Ficção (palavras emprestadas)

ficção marcante
o romance

particular afecto
cansado

angústias interiores
múltiplas contradições

a realidade
é invenção

fascinante
profeta espiritual
de consciência aguda.

INCOMPLETO

Busque Amor nova arte, novo engenho
Porque o que nos habita esmoreceu
Invente outra alegria, outro empenho,
E leve o que aqui já feneceu

Ajuíze, em mil voos – tantas flechas –
Os seres que cativa, desarmados
Os sonhos que os povoam abrem brechas
Espalhando desejos aos bocados

segunda-feira, 21 de abril de 2008

de estocolmo

Desculpem o silêncio, mas estive todos os dias ocupada com leitura e tradutores. Mas agora, tive um bocadinho e vim aqui. Marlene, Joana, Rita, gostei dos sonetos e dos poemas. Acho que têm que pensar na questão da surpresa verbal -- que é fundamental na escrita. Estou mesmo convencida de que isto é um espaço fantástico! Por exemplo, o poema do Gilberto Gil levanta questões muito interessantes.

Renato, não sei o que pensam os colegas. Querem responder à sugestão do Renato? Por mim, faço o que quiserem...

Não se esqueçam de ir ver o nome da poeta que nos vem visitar na próxima Quarta: Ana Paula Tavares. E de pensar em perguntas. Ainda hoje (espero), vou colocar alguns poemas aqui.


Um abraço,

ana luísa

P.S. Acreditam que as instruções do blogue me aparecem todas em sueco?! Renato, isto será normal?

domingo, 20 de abril de 2008

Metáfora ou a lata poética

Ontem fui ver o concerto do Gilberto Gil - "Luminoso" que, foi de facto, iluminado.
Foi uma apresentação intimista...apenas voz e violão sem mais adornos, que aliás não seriam necessários, pois a presença daquela voz transbordava do palco.
No meio das canções, uma sobre os Poetas e as suas Metáforas, que partilho com vocês:

Metáfora de Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

sábado, 19 de abril de 2008

A Letter is a Joy of Earth / It is denied the Gods

Isto é de Emily Dickinson, como poderão imaginar (e, porque Dickinson tem estas elipses na sintaxe, no segundo verso deve ler-se "it is denied to the Gods"). Com esse quase aforismo, eu queria exprimir o meu contentamento com este blogue. Estou de partida para Estocolmo, depois Liverpool, depois Oxford (um périplo), gostava de responder a todos, mas não tenho simplesmente tempo neste momento. Mas levo o computador -

Gostei imenso dos belos estorninhos de Tsevtayeva, dos sonetos (Fenistil incluído), da variação sobre Tolstoi...

Um abraço (e conto dizer alguma coisa ainda no fim-de-semana!)

sexta-feira, 18 de abril de 2008

E como soneto ainda não há, mas não podendo deixar de vos acompanhar nesta aventura, um poema a partir de um verso de um dos meus poetas favoritos: Paul Celan. 

Depois da chuva a melancolia

para o LM 
resposta ao sonho:
poeta

"a melancolia infinitamente presa à terra"
tu és eu com menos vinte e três nadas
eu sou tu - do meu silêncio indecifrável vens -
tanto desassossego que nos entra pela chuva
o teu olhar rouco enclausurado no meu
e queríamos morrer
e queríamos morrer

ouvir-te, eu redonda - cheia de entranhas -
tudo - não estranho - ser das minhas pálpebras
as tuas mãos asas riscadas pelo meu arado
o teu rosto inscrito na terra que piso agora
o teu rosto escavado no meu
e queríamos morrer
e queríamos morrer

dizíamos então a sussurrar depois da chuva 
                              a melancolia

para a Ana Luísa Amaral um estorninho russo

Resposta Tardia

Para Marina Tsvetáeva


Invisível, espectro, ave escarninha,
por que te escondes nos arbustos negros?
Na casota esburacada do estorninho,
nas cruzes quebradas ora faíscas,
ora gritas da torre de Marinka:
"Hoje voltei a casa.
Admirai, campos maternos,
o que por causa disso me esperava.
Meus seres amados sorvidos num abismo,
a casa dos meus pais aniquilada."
Hoje andamos, Marina, tu e eu,
pela capital da meia-noite, em nossa
peugada milhões de semelhantes,
e não há procissão mais silenciosa,
à volta dobram fúnebres os sinos
e os gemidos selvagens da nevasca
moscovita, cobrindo nossos trilhos.

Anna Akhmátova, 16 de Março de 1940

Sugestão

Já agora uma sugestão, se todos estiverem de acordo. Gostava de ter nas últimas sessõees a oportunidade de "ler" alguns poemas portugueses contemporâneos. Quando digo ler, pretendo dizer interpretar, ou seja fazer uma leitura interpretativa. De facto, há alguns poetas contemporâneos, mesmo consagrados, que leio e que me me dizem muito pouco, creio que por limitação minha.

Como 1ª sugestão posso dar, por exemplo, dos poemas distribuídos, os da Luísa Neto Jorge


Renato

Soneto à força

Para a Ivone, por aquilo que ela disse na última sessão sobre os sonetos. Confesso que estou a achar graça a esta brincadeira dos sonetos.

Querem que escreva à força um soneto
e eu, teimoso, recuso-me a escrevê-lo
Protesto, “não vendo o poema a metro
mesmo se tantos andam a vendê-lo…”

Querem rimas, e muito bem medidas
átonas, tónicas, no sítio certo
Dez sílabas secas, que espremidas
não regam as areias dum deserto


E eu, teimoso, dizia que recusava
porque era uma afronta sem limites
forçarem-me a escrever tal objecto

Mas mais uma vez, sem dar por nada
no meio de tais brilhantes palpites
como se nada fora, tinha um soneto
O poeta ampliado
enunciou a morte do derradeiro idioma.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Poema só com palavras do artigo sobre Tolstoi

A expressão que me chamou mais a atenção no artigo foi "Profeta Espiritual" e daí surgiu esta metáfora do Mundo como profeta espiritual do Homem, por conceder o seu espaço à Evolução.


O Mundo, Profeta Espiritual,
conheceu a consciência e as virtudes,
a paz e a verdade.
da Companheira,
as angústias inferiores,
e o afecto, também.

Desfrutava a vida.

Já distante no tempo
ao mundo sobrepõe-se a morte
e da Existência
tudo acaba.

Joana C.

Pré-Soneto

Eu cantarei de amor tão docemente
Esses momentos passados assim
Entre murmúrios e carinhos teus
Histórias de tempos antes de nós.

Ficar contigo nessa eternidade
Nos sonhos perfeitos cheios de amor,
Nas feridas cobertas sem pensar,
Pedindo sempre mais e mais amor.

Mas o tempo dos tempos chega ao fim
Fica o recordar a bater em mim
Desse coração que por ti perdi.

E pelas manhãs logo ao acordar
Os olhos abrem-se p’ra luz dum dia
Em que tu vais, talvez, p’ra mim voltar.

Joana Correia

TPC reformulado ou tentativa de poema em forma de soneto

Eu cantarei de amor tão docemente
A meiguice refugiada sobre
Narizes húmidos e inconscientes,
Dos que “sentem só o que sentem”.

Na soma da conta que algum deus fez
Se acomodam cada um num meu canto,
A irrequietude abraçando os meus pés
E a altivez repartida pelos braços:

A rainha dos telhados do bairro,
O amigo de sempre e de todos
E a nuvem com patas de algodão.

E porque não hei de cantar de amor
Aqueles três que no final do dia
Me aconchegam sem nada pedir?
Rita Himmel

Soneto Fenistil

Creio que este foi o único soneto que alguma vez escrevi. Como estamos numa maré de sonetos e de lírica Camoneana, arrisco.







Soneto Fenistil

Poesia é sarna que arde sem se ver
ferida que comicha e não se sente
a praga maldita daquela gente
para quem não basta sobreviver

É um querer mais do que bem querer
é andar sozinho por entre a gente
é nunca contentar-se de contente
é cuidar que se ganha em se perder

Fenistil!, grita o político veemente
Fenistil!, agora e em toda a parte
Fenistil!, gratuito p’ra toda a gente

Fenistil!, apoia o crítico de Arte
Fenistil!, já! imediatamente!
Fenistil!, morre o comissário de enfarte

Amor agri-doce

Eu cantarei de amor tão docemente
Que de tanto que agora canto cansarei
E do amor que me pesa levemente
Em breve amor pesado carregarei

E se quiseres, amor, perceber o emergente
Estado de fim deste amor que enterrei
Olha para nós, amor, olha de frente
Que a resposta, que não vês, não te darei

Mas se ainda assim, amor, tu não souberes
Por onde anda esse afecto furagido
Dentro de mim, melhor que não o prendas

Antes liberta, amor, amor que me tiveres
Sob a pena de o teres apenas tido
Ao amor líquido que escorreu das minhas fendas

Incursão à última estação do afecto

Como se lhe pertencesse a descoberta
Antecipou os males da última realidade
A mais forte e...mais marcante
Que em qualquer parte do afecto
Sentencia o final do nosso tempo

Começou a ver a morte de perto
Muito próximo e em passo decisivo
Mas,
Estendeu ainda a irreconciliável existência do romance
pelos terrenos da última e insuperável tranquilidade

Gostava de dizer que a admiração aguda não se esgota
Mas,
não é verdade!

terça-feira, 15 de abril de 2008

ALGUNS COMENTÁRIOS

Obrigada, Renato, pela contribuição! Gostei, sobretudo, da dimensão humorística que o segundo verso institui.
É óptimo que o Rui e o António se tenham juntado à tertúlia (onde estão as nossas contribuidoras?). Jorge Luis Borges: irreprensível, de facto. Mais: genial.
Ainda sobre musas, do José Miguel Silva:


A MINHA MUSA

É mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
Furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece-me de casa
durante meses. Apetece-me
bater-lhe. Mas talvez a culpa
seja minha. Passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
É natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.

Amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
Meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (Mas tenho medo
das alturas, e ela sabe-o.
Aproveita-se da minha debilidade.)

Obriga-me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
É preciso ter estômago
para tanta solidão. Não admira
que muitas vezes a traia
com a Helena, com o bourbon
dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no Largo do Viriato.
Mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.

É tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. Por ela, não havia
domingos nem feriados,
não havia verão. Era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
Marca-me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. Diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.

Fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
Diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
Mallarmé, levanta-se de noite
para me rasgar os poemas.
Não é fácil aturá-la.

Só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama-lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama-lhe
trigo, vê uma porta
e chama-lhe susto.
Às vezes pergunto-me
se não será parva.

A verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
Mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.


José Miguel Silva, Ulisses já não mora aqui
Lisboa, & etc, 2002

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Jorge Luís Borges

Olá a todos!
Para o primeiro post é mais seguro começar com as palavras dos outros! Neste caso, e mesmo que em espanhol ( perdoem-me pelo facto) , achei interessante partilhar algumas ideias do irrepreensível Jorge Luís Borges sobre a criação poética:

"Yo quisiera hablar de mi larga experiencia, mi modesta experiencia. Yo pasé... yo consagré toda mi vida a la literatura. Siempre supe, desde que era un niño, que mi destino sería literario, es decir: yo me veía siempre saturado de libros como en la biblioteca de mi padre, quien quizá me dio esa idea. Y bien, sabía que pasaría toda mi vida leyendo, soñando y escribiendo, y tal vez publicando, pero eso no es importante, no hace parte de un destino literario, pero en fin... yo hice eso. Hice lo posible, no por leer todos los libros, como decía Mallarmé, sino, en fin, para leer los libros que me gustaban. Tuve conciencia de que la lectura debe ser considerada no como una carga, sino como una fuente de felicidad, posible y fácil. Entonces voy a contarles, puesto que estamos hablando de una manera tranquila, espero, mis experiencias personales. Y bien, yo camino por las calles de Buenos Aires, por la Biblioteca Nacional, que dirigí hace un tiempo y que dejé después,y, de pronto, siento que algo va a llegar. Entonces espero. Ese algo llega. Es quizá una fábula, una noción cualquiera, que no concibo de manera clara, pero percibo siempre el comienzo y el fin y después me toca inventar lo que hay entre esas dos cosas. Hago lo que puedo. Después siento que esa idea exige, digamos, un cuento, un poema, un ensayo. Eso me es revelado después(...)

(...)Pero, a veces, mi punto de partida fue un texto cualquiera, ya que, entre las experiencias humanas, quizá una de las más bellas, una que asegura la felicidad de una cierta manera, es, como lo sabemos todos, la lectura. O, como decía Emerson, otro gran poeta: la poesía nace de la poesía; o, lo que yo dije anteriormente: la poesía nace del lenguaje, pues cada lenguaje es una manera de sentir el mundo, cada lenguaje es una literatura posible, incluso si no llega a serlo. Y bien, ésa es para mí otra manera de la creación poética(...)

(...)Y además hay otra cosa: cada vez que escribí sentí la emoción, la emoción de mi vida: yo creo que no se puede escribir sin emoción. sin pasión. La idea de la poesía como chorro de palabras es una idea del todo errónea, yo creo, una idea falsa. Y además. cuando uno ha vivido algo, cuando uno ha sentido algo, en un hombre de letras esto pide una forma (...)

Para lerem com mais detalhe consultem aqui

Vou ser poeta

- Vou ser poeta - disse uma vez, e levantou os olhos, de cabeça inclinada para o lado.
Contemplava o mar, as suas madeixas louras ondulavam no vento quente, debaixo das pálpebras semicerradas observava atentamente o horizonte. A ama abraçou-o, apertou a cabeça dele contra o peito. E disse:
- Não, vais ser soldado.
- Como o pai? - a criança abanava a cabeça. - O pai é também poeta, não sabias? Pensa sempre noutra coisa.

- Sándor Márai, As velas ardem até ao fim

Busque Amor novas artes, novo engenho - RR

Como exercício apenas - tal como 'posts' anteriores - tento responder ao desafio da Ana Luísa Amaral e escrever um soneto. Como creio que este exercício é para 4ª feira próxima, coloco-o no 'blog'. Ficamos à espera de outras "propostas"

Busque Amor novas artes, novo engenho,
que eu já não tenho forças p’ras buscar
O amor ardente que por ti tenho
amarra-me as mãos, seca-me o falar

E de cada vez que por ti venho
vou-me embora, quando quero ficar
E já nem as esperanças mantenho
de amanhã, por ti, de novo voltar

Porque sei que te perco se abrir
ou se não abrir o meu coração
tanto faz, vou-me sempre desgraçar

Mas em vez de me decidir partir
continuo a viver nesta aflição
se viver, se lhe poderá chamar


RR

domingo, 13 de abril de 2008

Numa mensagem anterior, dava os parabéns ao Renato pelos textos -- e pelo blogue, é claro, que agradecia! Essa tentativa de mensagem não resultou: sou ainda ignorante nisto de blogues, e, como vêem, sai tudo com o mesmo tipo de letra, nem itálicos consigo fazer... Ficam agora aqui, repetidos e visíveis (espero), os parabéns. E obrigada.
Sobre a musa

Pois, eu concordo com o Renato, mas que, secularizada ou recusada, ela continua a dar jeito como pretexto para a escrita, ah, isso continua! Seguem dois poemas:


“O problema da musa”

Hoje, pergunto o que fazer com a musa?
Vejo-a sentada no sofá, com uma revista na mão,
como se estivesse à espera de entrar
para a consulta; e deixo o tempo passar,
sem saber se a chame ou se a deixe em paz, com
a sua revista, enquanto acabo o poema. No entanto,
à medida que escrevo, a dúvida instala-se: e se ela
estivesse comigo, se as suas mãos pousassem nos
meus ombros, e os seus lábios respirassem com força
para cima de mim, seria outro este poema? Que
desejo o percorreria, ou a que rosto ausente o verso
daria forma, sob a sua inspiração? Devagar, sem
fazer barulho, deixo a página e espreito-a: a sua mão
disfarça um bocejo; e fecha os olhos, como
se o sono a dominasse. Então, prefiro
não a acordar; e acabo o poema sem ela, esperando
que venha ter comigo, num outro dia.

Nuno Júdice


NEM TÁGIDES, NEM MUSAS

Nem tágides nem musas:
só uma força que me vem de dentro,
de ponto de loucura, de poço
que me assusta,
seduzindo

Uma fonte de fios de água
finíssima
(raio de luar a mais
a secaria)

Nem rio nem lira
nem feminino grupo a transbordar:
só o que herdei em força não herdada,
em fonte onde o luar
não está -

Ana Luisa Amaral

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Eu não sou eu nem sou o outro

Não resisto a enviar isto, pois o pequeno poema do M.S. Carneiro foi um dos que nos foi sugerido pela Ana Luísa Amaral na última sessão da oficina. Uma pequena variação em dó maior, que escrevi há muitos anos (quantos?) a partir de um dos muito poucos poemas que sempre soube de cor, de um dos poetas de que mais gosto.

Novas Definições

Eu não sou eu nem sou o outro,
sou qualquer coisa de intermédio:
pilar da ponte de tédio
que vai de mim para o Outro.

( Em "Indícios de Ouro" de M.S.Carneiro)


Sob o Eu que eu sou, não sendo
há pontes, que só eu quero passar
O Eu que eu sou, temendo
agarra-me e obriga-me a ficar

Eu sou Eu e sou o Outro
e Aquele que nunca quis ser.
Vou de mim para o Outro
mas regresso antes de ser

Pontes de tédio edifiquei
estreitas, mas atravesso
Ao Eu que atrás deixei
entediado, eu regresso

Eu estou deste e d’ outro lado
cruzo as pontes à procura
Depois de não ter encontrado
regresso, já noite escura

Oh! quem me dera regressar
viajar, só de mim para mim,
deste tédio fim encontrar
e esquecer-me de onde vim...

Afinal existem ou não Musas?

As musas

Afinal onde é que estão
as musas, se é que existem?
Estão no céu, no mar, no chão?
Será que ainda subsistem?

Desculpem lá a franqueza
mas já não somos meninos
São histórias de certeza
a lembrar os gambozinos

Se as chamam, não é à toa
não chamam homem bruto
Nada como mulher boa
para vender um produto


Renato Roque, 11 Abril 2008