quarta-feira, 30 de abril de 2008
Se...
Para a Ana Luísa, com um ramo de flores de pedido de desculpas... o trabalho de casa:
Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu não nasceria a escrever sonetos, mas morreria a saber juntar palavras em disjunções belas, que ficariam gravadas em pó e vento e circulariam sem poiso, beira nem eira por todos os sítios que, em matéria, não toquei.
Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu não nasceria a escrever sonetos, mas morreria a saber juntar palavras em disjunções belas, que ficariam gravadas em pó e vento e circulariam sem poiso, beira nem eira por todos os sítios que, em matéria, não toquei.
Fluídos
Eu cantarei de amor tão docemente
Durante um momento fugaz e ardente
No ar ausente pairas incendiado,
Beijo, trémula latejando fado
Eu gritarei de amor tão loucamente
Quando te encontre em meu leito candente
Olhar febril recorre veemente
As tuas mãos em mim suavemente
Sinto o teu odor no peito trespassando
Os teus cabelos em mim sussurrando
Amor, com os teus sons inesperados
Relincham fluídos varando ocasos
Exaltando das profundezas, ondas
Batem convalescentes e redondas.
Durante um momento fugaz e ardente
No ar ausente pairas incendiado,
Beijo, trémula latejando fado
Eu gritarei de amor tão loucamente
Quando te encontre em meu leito candente
Olhar febril recorre veemente
As tuas mãos em mim suavemente
Sinto o teu odor no peito trespassando
Os teus cabelos em mim sussurrando
Amor, com os teus sons inesperados
Relincham fluídos varando ocasos
Exaltando das profundezas, ondas
Batem convalescentes e redondas.
Duplicação da escrita criativa
Boa tarde
Gostei bastante de um poema de Pedro Tamen que começa assim:
'Por mais que tente escapar-me
com meneios de felino,
de nada vale esse charme:
não tarda e quino.'
E porque quinar quinamos todos que tal fazer um pouco mais do que gostamos e duplicar este curso de escrita criativa. Propunha que se discutissem disponibilidades hoje na aula (sessão:).
Até logo
Joana
Gostei bastante de um poema de Pedro Tamen que começa assim:
'Por mais que tente escapar-me
com meneios de felino,
de nada vale esse charme:
não tarda e quino.'
E porque quinar quinamos todos que tal fazer um pouco mais do que gostamos e duplicar este curso de escrita criativa. Propunha que se discutissem disponibilidades hoje na aula (sessão:).
Até logo
Joana
terça-feira, 29 de abril de 2008
De volta ao Plano Inclinado
Os comentários da Marlene e da Ivone ao Plano Inclinado obrigaram-me a responder. Pretendo com esta resposta também reconhecer a justeza das críticas da Ivone à falta de rigor na minha escrita, motivada por um controlo grosseiro do plano e da velocidade das palavras. Acredito mesmo que foram o atrito e a inércia, que desprezei por simplificação, que fizeram com que o livro ainda não tivesse encontrado editor.
Inclinei-me por cima da escrita para a ler de soslaio, distraí-me, desequilibrei-me e caí por sobre o plano que ruiu com estrondo. Enfiei a haste dum h retardatário no olho direito e gritei bem alto "foda-se, foda-se", e com o balanço subi a cómoda, que virou de pantanas o quarto. Molero aproveitou a balbúrdia para entrar em cena e frisar bem que aquela deixa era dele. “Vai-te tu embora que esta história não é a tua”, ripostei eu com firmeza.
“É bem feito”, diz a Ivone, aproveitando também a minha fraqueza, “bem te disse para teres em conta o atrito e a inércia do h. Bem sabes que o h é uma letra preguiçosa que tende sempre a ficar para trás. Ele bem empina a haste para não tropeçar mas, mesmo assim, não pode competir com o o ou com o a.”
Mas o meu principal problema, depois de me ter levantado do meio dos escombros, era o que fazer com o plano ruído. “Talvez música concreta.” grita lá do fundo em tom de desafio Molero, que aproveitara a minha atrapalhação para se não ir embora.
Inclinei-me por cima da escrita para a ler de soslaio, distraí-me, desequilibrei-me e caí por sobre o plano que ruiu com estrondo. Enfiei a haste dum h retardatário no olho direito e gritei bem alto "foda-se, foda-se", e com o balanço subi a cómoda, que virou de pantanas o quarto. Molero aproveitou a balbúrdia para entrar em cena e frisar bem que aquela deixa era dele. “Vai-te tu embora que esta história não é a tua”, ripostei eu com firmeza.
“É bem feito”, diz a Ivone, aproveitando também a minha fraqueza, “bem te disse para teres em conta o atrito e a inércia do h. Bem sabes que o h é uma letra preguiçosa que tende sempre a ficar para trás. Ele bem empina a haste para não tropeçar mas, mesmo assim, não pode competir com o o ou com o a.”
Mas o meu principal problema, depois de me ter levantado do meio dos escombros, era o que fazer com o plano ruído. “Talvez música concreta.” grita lá do fundo em tom de desafio Molero, que aproveitara a minha atrapalhação para se não ir embora.
These are merely instances
I am what is around me.
Women understand this.
One is not duchess
A hundred yards from a carriage.
These, then are portraits:
A black vestibule;
A high bed sheltered by curtains.
These are merely instances
Wallace Stevens, “Theory”
Muito boa tarde!
“Cá estamos nós outra vez, / (…) em frente do público da poesia”, como diria Nanni Ballestrini! Um belo poema, chamado “Pequeno louvor do público da poesia” (se quiserem, encontram em http://www1.ci.uc.pt/poetas/poemas/nanni.htm)
Desculpem tanto silêncio, mas estive sem acesso à Internet desde Quinta-feira, cheguei no Sábado e ontem dei aulas todo o dia… Só agora tive um bocadinho para vir aqui, a este nosso site (ou sítio, como agora se diz) fantástico.
Tenho uma má notícia: a Ana Paula Tavares está doente, cheia de febre, e não pode vir amanhã. O Pedro Tamen, em contrapartida, está confirmadíssimo para dia 7 De Maio e, como já vos tinha dito, a Maria Teresa Horta vem à FLUP no dia 23, também de Maio. Amanhã digo que poemas gostava que lessem do Tamen (melhor, já posso ir dizendo: são os que estão num site que ele agora tem, que se chama
http://www.arscives.com/pedrotamen
O TPC, para responder à pergunta da Marlene, é assim: escrever várias frases a partir desse mote. Por exemplo:
“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu nasceria já a escrever sonetos que fossem perfeitos”, ou
“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu transformava tudo o que é soneto em verso livre”, ou
“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, Shakespeare escrevia a pé coxinho em vez de pé jâmbico”...
Brinco, claro, mas, mais uma vez, este exercício tem como objectivo o desbloqueamento :) :) Era engraçado se as frases estivessem todas relacionadas com poesia (e não se produzissem coisas do tipo “Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, toda a gente vivia em paz”).
Amanhã, estaremos só connosco. E falaremos dos poemas que escreveram, de poesia – e escrever-se-ão poemas também.
P.S. Recordam-se da sugestão do Renato de que lêssemos (analisássemos) um poema? Ninguém disse o que achava…
Women understand this.
One is not duchess
A hundred yards from a carriage.
These, then are portraits:
A black vestibule;
A high bed sheltered by curtains.
These are merely instances
Wallace Stevens, “Theory”
Muito boa tarde!
“Cá estamos nós outra vez, / (…) em frente do público da poesia”, como diria Nanni Ballestrini! Um belo poema, chamado “Pequeno louvor do público da poesia” (se quiserem, encontram em http://www1.ci.uc.pt/poetas/poemas/nanni.htm)
Desculpem tanto silêncio, mas estive sem acesso à Internet desde Quinta-feira, cheguei no Sábado e ontem dei aulas todo o dia… Só agora tive um bocadinho para vir aqui, a este nosso site (ou sítio, como agora se diz) fantástico.
Tenho uma má notícia: a Ana Paula Tavares está doente, cheia de febre, e não pode vir amanhã. O Pedro Tamen, em contrapartida, está confirmadíssimo para dia 7 De Maio e, como já vos tinha dito, a Maria Teresa Horta vem à FLUP no dia 23, também de Maio. Amanhã digo que poemas gostava que lessem do Tamen (melhor, já posso ir dizendo: são os que estão num site que ele agora tem, que se chama
http://www.arscives.com/pedrotamen
O TPC, para responder à pergunta da Marlene, é assim: escrever várias frases a partir desse mote. Por exemplo:
“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu nasceria já a escrever sonetos que fossem perfeitos”, ou
“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu transformava tudo o que é soneto em verso livre”, ou
“Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, Shakespeare escrevia a pé coxinho em vez de pé jâmbico”...
Brinco, claro, mas, mais uma vez, este exercício tem como objectivo o desbloqueamento :) :) Era engraçado se as frases estivessem todas relacionadas com poesia (e não se produzissem coisas do tipo “Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, toda a gente vivia em paz”).
Amanhã, estaremos só connosco. E falaremos dos poemas que escreveram, de poesia – e escrever-se-ão poemas também.
P.S. Recordam-se da sugestão do Renato de que lêssemos (analisássemos) um poema? Ninguém disse o que achava…
Dúvida
Olá a todos,
Obrigada pelos poemas que têm partilhado.
Sabe bem vir aqui ao fim do dia espreitar.
Em relação à nossa próxima sessão de poesia criativa tenho uma dúvida:
Não percebi bem a tarefa para casa. Tenho uma lista de frases todas iguais:
"Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu...."
o objectivo é obviamente completar, mas são 7 frases iguais....alguém me pode esclarecer sobre o que fazer?
Obrigada e até amanhã
Obrigada pelos poemas que têm partilhado.
Sabe bem vir aqui ao fim do dia espreitar.
Em relação à nossa próxima sessão de poesia criativa tenho uma dúvida:
Não percebi bem a tarefa para casa. Tenho uma lista de frases todas iguais:
"Se o melhor dos mundos possíveis fosse realidade, eu...."
o objectivo é obviamente completar, mas são 7 frases iguais....alguém me pode esclarecer sobre o que fazer?
Obrigada e até amanhã
domingo, 27 de abril de 2008
sábado, 26 de abril de 2008
O plano inclinado
Confesso que há muitos, muitos anos escrevi algumas coisas que se poderiam etiquetar como poemas. Mas isso foi há muito e desde aí, se tem havido alturas da minha vida em que escrevo, mais ou menos, tem sido sempre em prosa, ainda que alguns textos se possam (poderão?) identificar como prosa com alguns contornos poéticos.
É o caso do texto "O Plano inclinado" que não resisti a colocar aqui no blog. Era o primeiro texto de um livro de pequenas histórias, com o mesmo título, que está guardado, porque nunca consegui publicar. O texto poderá fazer sentido aqui porque um dos temas de discussão tem sido a escrita. Porque acontece a escrita e quando acontece. A minha "musa" é afinal um simples plano inclinado. Espero que vos divirta, pois apesar de antigo, continua a ser um dos meus textos de que ainda gosto.
O plano inclinado
Para Galileu Galilei,
por razões óbvias
Passou-me recentemente pelas mãos um velho livro de Física.
Ao folheá-lo, fui atraído pela descrição das experiências efectuadas pelo velho Galileu com o plano inclinado.
Galileu fez escorregar esferas de diversos tamanhos e diversos materiais por um plano inclinado com diferentes inclinações.
Estas experiências permitiram-lhe constatar que :
- a velocidade que as esferas atingiam não dependia do tamanho, nem do material de que as esferas eram feitas;
- a velocidade atingida só dependia da inclinação do plano, aumentando com esta.
Estes resultados obtidos por Galileu, que eu já conhecia, mas que estavam enterrados algures nas profundezas da minha arca de memórias, despertaram em mim uma ideia: se o plano inclinado tinha resultado tão bem, independentemente do material de que eram feitas as esferas, porque não experimentá-lo com palavras.
Experimentei então escrever num plano inclinado com esfero(gráfica). As palavras escorregavam a uma velocidade constante.
Reparei que quando inclinava mais o plano de escrita a velocidade das palavras aumentava até se tornar incontrolável e as palavras caírem em catadupa e se partirem, resultando em textos de pé quebrado e sem sentidos. Tentava então em vão colá-los e reanimá-los.
Ajustei por fim a inclinação do plano para conseguir uma velocidade ideal para as palavras, que me permitisse recolhê-las em ordem numa folha de papel branca, estendida com todo o cuidado ao fundo do plano.
Depois de acertar a inclinação certa, as palavras deslizavam umas após as outras e enchiam depressa a folha de papel.
Mas um outro problema surgiu de imediato: a mudança de folha de papel quando uma ficava cheia.
A princípio eu não era suficientemente rápido e algumas palavras perdiam-se. Tinha de procurá-las uma a uma, pois espalhavam-se pela mesa de trabalho e pelo quarto.
Ainda no outro dia, ao espreitar debaixo da cama, encontrei um ‘espelho’, coberto de cotão. Limpei-o cuidadosamente até de novo reflectir e coloquei-o em cima da cómoda. Utilizo-o todas as manhãs, quando me penteio.
Só depois de muitas tentativas e de muito treino consegui aperfeiçoar a técnica de mudar a folha de papel com a velocidade que a manobra exige.
Acabei também por me tornar exímio na arte de controlar a velocidade das palavras, à custa de pequenas variações da inclinação do plano.
Enquanto me não tornei perito nessa arte difícil da escrita em plano inclinado, tenho de confessar que fazia batota e preenchia o fim da folha com espaços.
Consegui desta forma aumentar a dimensão do meu quarto, à custa de uns quantos espaços perdidos, caídos fora da folha, que depois soprava para o chão.
Hoje, alguns anos depois de treino continuado, perco em média duas palavras por cem folhas de papel A4, sobretudo as palavras esdrúxulas com mais de quatro sílabas, que são as mais complicadas de controlar.
Com essas palavras perdidas estou a criar um reservatório de palavras difíceis, que poderei vir a utilizar no futuro, se as palavras me faltarem. Poderão ser muito úteis, especialmente se pretender vir a escrever poesia modernista.
As folhas cheias de palavras que preenchem este livro foram obtidas com a ajuda de um plano inclinado, calibrado para a língua portuguesa.
É o caso do texto "O Plano inclinado" que não resisti a colocar aqui no blog. Era o primeiro texto de um livro de pequenas histórias, com o mesmo título, que está guardado, porque nunca consegui publicar. O texto poderá fazer sentido aqui porque um dos temas de discussão tem sido a escrita. Porque acontece a escrita e quando acontece. A minha "musa" é afinal um simples plano inclinado. Espero que vos divirta, pois apesar de antigo, continua a ser um dos meus textos de que ainda gosto.
O plano inclinado
Para Galileu Galilei,
por razões óbvias
Passou-me recentemente pelas mãos um velho livro de Física.
Ao folheá-lo, fui atraído pela descrição das experiências efectuadas pelo velho Galileu com o plano inclinado.
Galileu fez escorregar esferas de diversos tamanhos e diversos materiais por um plano inclinado com diferentes inclinações.
Estas experiências permitiram-lhe constatar que :
- a velocidade que as esferas atingiam não dependia do tamanho, nem do material de que as esferas eram feitas;
- a velocidade atingida só dependia da inclinação do plano, aumentando com esta.
Estes resultados obtidos por Galileu, que eu já conhecia, mas que estavam enterrados algures nas profundezas da minha arca de memórias, despertaram em mim uma ideia: se o plano inclinado tinha resultado tão bem, independentemente do material de que eram feitas as esferas, porque não experimentá-lo com palavras.
Experimentei então escrever num plano inclinado com esfero(gráfica). As palavras escorregavam a uma velocidade constante.
Reparei que quando inclinava mais o plano de escrita a velocidade das palavras aumentava até se tornar incontrolável e as palavras caírem em catadupa e se partirem, resultando em textos de pé quebrado e sem sentidos. Tentava então em vão colá-los e reanimá-los.
Ajustei por fim a inclinação do plano para conseguir uma velocidade ideal para as palavras, que me permitisse recolhê-las em ordem numa folha de papel branca, estendida com todo o cuidado ao fundo do plano.
Depois de acertar a inclinação certa, as palavras deslizavam umas após as outras e enchiam depressa a folha de papel.
Mas um outro problema surgiu de imediato: a mudança de folha de papel quando uma ficava cheia.
A princípio eu não era suficientemente rápido e algumas palavras perdiam-se. Tinha de procurá-las uma a uma, pois espalhavam-se pela mesa de trabalho e pelo quarto.
Ainda no outro dia, ao espreitar debaixo da cama, encontrei um ‘espelho’, coberto de cotão. Limpei-o cuidadosamente até de novo reflectir e coloquei-o em cima da cómoda. Utilizo-o todas as manhãs, quando me penteio.
Só depois de muitas tentativas e de muito treino consegui aperfeiçoar a técnica de mudar a folha de papel com a velocidade que a manobra exige.
Acabei também por me tornar exímio na arte de controlar a velocidade das palavras, à custa de pequenas variações da inclinação do plano.
Enquanto me não tornei perito nessa arte difícil da escrita em plano inclinado, tenho de confessar que fazia batota e preenchia o fim da folha com espaços.
Consegui desta forma aumentar a dimensão do meu quarto, à custa de uns quantos espaços perdidos, caídos fora da folha, que depois soprava para o chão.
Hoje, alguns anos depois de treino continuado, perco em média duas palavras por cem folhas de papel A4, sobretudo as palavras esdrúxulas com mais de quatro sílabas, que são as mais complicadas de controlar.
Com essas palavras perdidas estou a criar um reservatório de palavras difíceis, que poderei vir a utilizar no futuro, se as palavras me faltarem. Poderão ser muito úteis, especialmente se pretender vir a escrever poesia modernista.
As folhas cheias de palavras que preenchem este livro foram obtidas com a ajuda de um plano inclinado, calibrado para a língua portuguesa.
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Busque amor, novas artes, novo engenho
Busque amor, novas artes, novo engenho
para lá do seu velho desempenho
busque novos inadiáveis muros
e engenhosos caminhos seguros
Grande é o engenho do homem
que o eleva em pleno planar
sob a pedra que o caminho lança
essa que só vê a sua criança
E artes e amores em aperto
embalados em malas portáteis
aguardam entretanto conserto
Homem novo, velho, velho, velhinho
que roda sobre si com a terra
sempre à volta da mesma pedra
Vivam. Sobre a outra (mesma) pedra, um desses tais modernistas :) que se trai aqui em sentimento num poema de que gosto bastante:
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
Um grande abraço e um bom 25 de Abril.
para lá do seu velho desempenho
busque novos inadiáveis muros
e engenhosos caminhos seguros
Grande é o engenho do homem
que o eleva em pleno planar
sob a pedra que o caminho lança
essa que só vê a sua criança
E artes e amores em aperto
embalados em malas portáteis
aguardam entretanto conserto
Homem novo, velho, velho, velhinho
que roda sobre si com a terra
sempre à volta da mesma pedra
Vivam. Sobre a outra (mesma) pedra, um desses tais modernistas :) que se trai aqui em sentimento num poema de que gosto bastante:
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
Um grande abraço e um bom 25 de Abril.
terça-feira, 22 de abril de 2008
Ficção (palavras emprestadas)
ficção marcante
o romance
particular afecto
cansado
angústias interiores
múltiplas contradições
a realidade
é invenção
fascinante
profeta espiritual
de consciência aguda.
o romance
particular afecto
cansado
angústias interiores
múltiplas contradições
a realidade
é invenção
fascinante
profeta espiritual
de consciência aguda.
INCOMPLETO
Busque Amor nova arte, novo engenho
Porque o que nos habita esmoreceu
Invente outra alegria, outro empenho,
E leve o que aqui já feneceu
Ajuíze, em mil voos – tantas flechas –
Os seres que cativa, desarmados
Os sonhos que os povoam abrem brechas
Espalhando desejos aos bocados
Porque o que nos habita esmoreceu
Invente outra alegria, outro empenho,
E leve o que aqui já feneceu
Ajuíze, em mil voos – tantas flechas –
Os seres que cativa, desarmados
Os sonhos que os povoam abrem brechas
Espalhando desejos aos bocados
segunda-feira, 21 de abril de 2008
de estocolmo
Desculpem o silêncio, mas estive todos os dias ocupada com leitura e tradutores. Mas agora, tive um bocadinho e vim aqui. Marlene, Joana, Rita, gostei dos sonetos e dos poemas. Acho que têm que pensar na questão da surpresa verbal -- que é fundamental na escrita. Estou mesmo convencida de que isto é um espaço fantástico! Por exemplo, o poema do Gilberto Gil levanta questões muito interessantes.
Renato, não sei o que pensam os colegas. Querem responder à sugestão do Renato? Por mim, faço o que quiserem...
Não se esqueçam de ir ver o nome da poeta que nos vem visitar na próxima Quarta: Ana Paula Tavares. E de pensar em perguntas. Ainda hoje (espero), vou colocar alguns poemas aqui.
Renato, não sei o que pensam os colegas. Querem responder à sugestão do Renato? Por mim, faço o que quiserem...
Não se esqueçam de ir ver o nome da poeta que nos vem visitar na próxima Quarta: Ana Paula Tavares. E de pensar em perguntas. Ainda hoje (espero), vou colocar alguns poemas aqui.
Um abraço,
ana luísa
P.S. Acreditam que as instruções do blogue me aparecem todas em sueco?! Renato, isto será normal?domingo, 20 de abril de 2008
Metáfora ou a lata poética
Ontem fui ver o concerto do Gilberto Gil - "Luminoso" que, foi de facto, iluminado.
Foi uma apresentação intimista...apenas voz e violão sem mais adornos, que aliás não seriam necessários, pois a presença daquela voz transbordava do palco.
No meio das canções, uma sobre os Poetas e as suas Metáforas, que partilho com vocês:
Metáfora de Gilberto Gil
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Foi uma apresentação intimista...apenas voz e violão sem mais adornos, que aliás não seriam necessários, pois a presença daquela voz transbordava do palco.
No meio das canções, uma sobre os Poetas e as suas Metáforas, que partilho com vocês:
Metáfora de Gilberto Gil
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
sábado, 19 de abril de 2008
A Letter is a Joy of Earth / It is denied the Gods
Isto é de Emily Dickinson, como poderão imaginar (e, porque Dickinson tem estas elipses na sintaxe, no segundo verso deve ler-se "it is denied to the Gods"). Com esse quase aforismo, eu queria exprimir o meu contentamento com este blogue. Estou de partida para Estocolmo, depois Liverpool, depois Oxford (um périplo), gostava de responder a todos, mas não tenho simplesmente tempo neste momento. Mas levo o computador -
Gostei imenso dos belos estorninhos de Tsevtayeva, dos sonetos (Fenistil incluído), da variação sobre Tolstoi...
Um abraço (e conto dizer alguma coisa ainda no fim-de-semana!)
Gostei imenso dos belos estorninhos de Tsevtayeva, dos sonetos (Fenistil incluído), da variação sobre Tolstoi...
Um abraço (e conto dizer alguma coisa ainda no fim-de-semana!)
sexta-feira, 18 de abril de 2008
E como soneto ainda não há, mas não podendo deixar de vos acompanhar nesta aventura, um poema a partir de um verso de um dos meus poetas favoritos: Paul Celan.
Depois da chuva a melancolia
para o LM
resposta ao sonho:
poeta
"a melancolia infinitamente presa à terra"
tu és eu com menos vinte e três nadas
eu sou tu - do meu silêncio indecifrável vens -
tanto desassossego que nos entra pela chuva
o teu olhar rouco enclausurado no meu
e queríamos morrer
e queríamos morrer
ouvir-te, eu redonda - cheia de entranhas -
tudo - não estranho - ser das minhas pálpebras
as tuas mãos asas riscadas pelo meu arado
o teu rosto inscrito na terra que piso agora
o teu rosto escavado no meu
e queríamos morrer
e queríamos morrer
dizíamos então a sussurrar depois da chuva
a melancolia
para a Ana Luísa Amaral um estorninho russo
Resposta Tardia
Para Marina Tsvetáeva
Invisível, espectro, ave escarninha,
por que te escondes nos arbustos negros?
Na casota esburacada do estorninho,
nas cruzes quebradas ora faíscas,
ora gritas da torre de Marinka:
"Hoje voltei a casa.
Admirai, campos maternos,
o que por causa disso me esperava.
Meus seres amados sorvidos num abismo,
a casa dos meus pais aniquilada."
Hoje andamos, Marina, tu e eu,
pela capital da meia-noite, em nossa
peugada milhões de semelhantes,
e não há procissão mais silenciosa,
à volta dobram fúnebres os sinos
e os gemidos selvagens da nevasca
moscovita, cobrindo nossos trilhos.
Anna Akhmátova, 16 de Março de 1940
Sugestão
Já agora uma sugestão, se todos estiverem de acordo. Gostava de ter nas últimas sessõees a oportunidade de "ler" alguns poemas portugueses contemporâneos. Quando digo ler, pretendo dizer interpretar, ou seja fazer uma leitura interpretativa. De facto, há alguns poetas contemporâneos, mesmo consagrados, que leio e que me me dizem muito pouco, creio que por limitação minha.
Como 1ª sugestão posso dar, por exemplo, dos poemas distribuídos, os da Luísa Neto Jorge
Renato
Como 1ª sugestão posso dar, por exemplo, dos poemas distribuídos, os da Luísa Neto Jorge
Renato
Soneto à força
Para a Ivone, por aquilo que ela disse na última sessão sobre os sonetos. Confesso que estou a achar graça a esta brincadeira dos sonetos.
Querem que escreva à força um soneto
e eu, teimoso, recuso-me a escrevê-lo
Protesto, “não vendo o poema a metro
mesmo se tantos andam a vendê-lo…”
Querem rimas, e muito bem medidas
átonas, tónicas, no sítio certo
Dez sílabas secas, que espremidas
não regam as areias dum deserto
E eu, teimoso, dizia que recusava
porque era uma afronta sem limites
forçarem-me a escrever tal objecto
Mas mais uma vez, sem dar por nada
no meio de tais brilhantes palpites
como se nada fora, tinha um soneto
Querem que escreva à força um soneto
e eu, teimoso, recuso-me a escrevê-lo
Protesto, “não vendo o poema a metro
mesmo se tantos andam a vendê-lo…”
Querem rimas, e muito bem medidas
átonas, tónicas, no sítio certo
Dez sílabas secas, que espremidas
não regam as areias dum deserto
E eu, teimoso, dizia que recusava
porque era uma afronta sem limites
forçarem-me a escrever tal objecto
Mas mais uma vez, sem dar por nada
no meio de tais brilhantes palpites
como se nada fora, tinha um soneto
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Poema só com palavras do artigo sobre Tolstoi
A expressão que me chamou mais a atenção no artigo foi "Profeta Espiritual" e daí surgiu esta metáfora do Mundo como profeta espiritual do Homem, por conceder o seu espaço à Evolução.
O Mundo, Profeta Espiritual,
conheceu a consciência e as virtudes,
a paz e a verdade.
da Companheira,
as angústias inferiores,
e o afecto, também.
Desfrutava a vida.
Já distante no tempo
ao mundo sobrepõe-se a morte
e da Existência
tudo acaba.
O Mundo, Profeta Espiritual,
conheceu a consciência e as virtudes,
a paz e a verdade.
da Companheira,
as angústias inferiores,
e o afecto, também.
Desfrutava a vida.
Já distante no tempo
ao mundo sobrepõe-se a morte
e da Existência
tudo acaba.
Joana C.
Pré-Soneto
Eu cantarei de amor tão docemente
Esses momentos passados assim
Entre murmúrios e carinhos teus
Histórias de tempos antes de nós.
Ficar contigo nessa eternidade
Nos sonhos perfeitos cheios de amor,
Nas feridas cobertas sem pensar,
Pedindo sempre mais e mais amor.
Mas o tempo dos tempos chega ao fim
Fica o recordar a bater em mim
Desse coração que por ti perdi.
E pelas manhãs logo ao acordar
Os olhos abrem-se p’ra luz dum dia
Em que tu vais, talvez, p’ra mim voltar.
Esses momentos passados assim
Entre murmúrios e carinhos teus
Histórias de tempos antes de nós.
Ficar contigo nessa eternidade
Nos sonhos perfeitos cheios de amor,
Nas feridas cobertas sem pensar,
Pedindo sempre mais e mais amor.
Mas o tempo dos tempos chega ao fim
Fica o recordar a bater em mim
Desse coração que por ti perdi.
E pelas manhãs logo ao acordar
Os olhos abrem-se p’ra luz dum dia
Em que tu vais, talvez, p’ra mim voltar.
Joana Correia
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Eu cantarei de amor tão docemente,
Sonetos
TPC reformulado ou tentativa de poema em forma de soneto
Eu cantarei de amor tão docemente
A meiguice refugiada sobre
Narizes húmidos e inconscientes,
Dos que “sentem só o que sentem”.
Na soma da conta que algum deus fez
Se acomodam cada um num meu canto,
A irrequietude abraçando os meus pés
E a altivez repartida pelos braços:
A rainha dos telhados do bairro,
O amigo de sempre e de todos
E a nuvem com patas de algodão.
E porque não hei de cantar de amor
Aqueles três que no final do dia
Me aconchegam sem nada pedir?
A meiguice refugiada sobre
Narizes húmidos e inconscientes,
Dos que “sentem só o que sentem”.
Na soma da conta que algum deus fez
Se acomodam cada um num meu canto,
A irrequietude abraçando os meus pés
E a altivez repartida pelos braços:
A rainha dos telhados do bairro,
O amigo de sempre e de todos
E a nuvem com patas de algodão.
E porque não hei de cantar de amor
Aqueles três que no final do dia
Me aconchegam sem nada pedir?
Rita Himmel
Soneto Fenistil
Creio que este foi o único soneto que alguma vez escrevi. Como estamos numa maré de sonetos e de lírica Camoneana, arrisco.
Soneto Fenistil
Poesia é sarna que arde sem se ver
ferida que comicha e não se sente
a praga maldita daquela gente
para quem não basta sobreviver
É um querer mais do que bem querer
é andar sozinho por entre a gente
é nunca contentar-se de contente
é cuidar que se ganha em se perder
Fenistil!, grita o político veemente
Fenistil!, agora e em toda a parte
Fenistil!, gratuito p’ra toda a gente
Fenistil!, apoia o crítico de Arte
Fenistil!, já! imediatamente!
Fenistil!, morre o comissário de enfarte
Soneto Fenistil
Poesia é sarna que arde sem se ver
ferida que comicha e não se sente
a praga maldita daquela gente
para quem não basta sobreviver
É um querer mais do que bem querer
é andar sozinho por entre a gente
é nunca contentar-se de contente
é cuidar que se ganha em se perder
Fenistil!, grita o político veemente
Fenistil!, agora e em toda a parte
Fenistil!, gratuito p’ra toda a gente
Fenistil!, apoia o crítico de Arte
Fenistil!, já! imediatamente!
Fenistil!, morre o comissário de enfarte
Amor agri-doce
Eu cantarei de amor tão docemente
Que de tanto que agora canto cansarei
E do amor que me pesa levemente
Em breve amor pesado carregarei
E se quiseres, amor, perceber o emergente
Estado de fim deste amor que enterrei
Olha para nós, amor, olha de frente
Que a resposta, que não vês, não te darei
Mas se ainda assim, amor, tu não souberes
Por onde anda esse afecto furagido
Dentro de mim, melhor que não o prendas
Antes liberta, amor, amor que me tiveres
Sob a pena de o teres apenas tido
Ao amor líquido que escorreu das minhas fendas
Que de tanto que agora canto cansarei
E do amor que me pesa levemente
Em breve amor pesado carregarei
E se quiseres, amor, perceber o emergente
Estado de fim deste amor que enterrei
Olha para nós, amor, olha de frente
Que a resposta, que não vês, não te darei
Mas se ainda assim, amor, tu não souberes
Por onde anda esse afecto furagido
Dentro de mim, melhor que não o prendas
Antes liberta, amor, amor que me tiveres
Sob a pena de o teres apenas tido
Ao amor líquido que escorreu das minhas fendas
Incursão à última estação do afecto
Como se lhe pertencesse a descoberta
Antecipou os males da última realidade
A mais forte e...mais marcante
Que em qualquer parte do afecto
Sentencia o final do nosso tempo
Começou a ver a morte de perto
Muito próximo e em passo decisivo
Mas,
Estendeu ainda a irreconciliável existência do romance
pelos terrenos da última e insuperável tranquilidade
Gostava de dizer que a admiração aguda não se esgota
Mas,
não é verdade!
Antecipou os males da última realidade
A mais forte e...mais marcante
Que em qualquer parte do afecto
Sentencia o final do nosso tempo
Começou a ver a morte de perto
Muito próximo e em passo decisivo
Mas,
Estendeu ainda a irreconciliável existência do romance
pelos terrenos da última e insuperável tranquilidade
Gostava de dizer que a admiração aguda não se esgota
Mas,
não é verdade!
terça-feira, 15 de abril de 2008
ALGUNS COMENTÁRIOS
Obrigada, Renato, pela contribuição! Gostei, sobretudo, da dimensão humorística que o segundo verso institui.
É óptimo que o Rui e o António se tenham juntado à tertúlia (onde estão as nossas contribuidoras?). Jorge Luis Borges: irreprensível, de facto. Mais: genial.
Ainda sobre musas, do José Miguel Silva:
A MINHA MUSA
É mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
Furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece-me de casa
durante meses. Apetece-me
bater-lhe. Mas talvez a culpa
seja minha. Passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
É natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.
Amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
Meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (Mas tenho medo
das alturas, e ela sabe-o.
Aproveita-se da minha debilidade.)
Obriga-me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
É preciso ter estômago
para tanta solidão. Não admira
que muitas vezes a traia
com a Helena, com o bourbon
dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no Largo do Viriato.
Mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.
É tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. Por ela, não havia
domingos nem feriados,
não havia verão. Era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
Marca-me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. Diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.
Fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
Diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
Mallarmé, levanta-se de noite
para me rasgar os poemas.
Não é fácil aturá-la.
Só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama-lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama-lhe
trigo, vê uma porta
e chama-lhe susto.
Às vezes pergunto-me
se não será parva.
A verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
Mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.
José Miguel Silva, Ulisses já não mora aqui
Lisboa, & etc, 2002
É óptimo que o Rui e o António se tenham juntado à tertúlia (onde estão as nossas contribuidoras?). Jorge Luis Borges: irreprensível, de facto. Mais: genial.
Ainda sobre musas, do José Miguel Silva:
A MINHA MUSA
É mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
Furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece-me de casa
durante meses. Apetece-me
bater-lhe. Mas talvez a culpa
seja minha. Passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
É natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.
Amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
Meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (Mas tenho medo
das alturas, e ela sabe-o.
Aproveita-se da minha debilidade.)
Obriga-me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
É preciso ter estômago
para tanta solidão. Não admira
que muitas vezes a traia
com a Helena, com o bourbon
dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no Largo do Viriato.
Mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.
É tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. Por ela, não havia
domingos nem feriados,
não havia verão. Era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
Marca-me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. Diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.
Fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
Diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
Mallarmé, levanta-se de noite
para me rasgar os poemas.
Não é fácil aturá-la.
Só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama-lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama-lhe
trigo, vê uma porta
e chama-lhe susto.
Às vezes pergunto-me
se não será parva.
A verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
Mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.
José Miguel Silva, Ulisses já não mora aqui
Lisboa, & etc, 2002
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Jorge Luís Borges
Olá a todos!
Para o primeiro post é mais seguro começar com as palavras dos outros! Neste caso, e mesmo que em espanhol ( perdoem-me pelo facto) , achei interessante partilhar algumas ideias do irrepreensível Jorge Luís Borges sobre a criação poética:
"Yo quisiera hablar de mi larga experiencia, mi modesta experiencia. Yo pasé... yo consagré toda mi vida a la literatura. Siempre supe, desde que era un niño, que mi destino sería literario, es decir: yo me veía siempre saturado de libros como en la biblioteca de mi padre, quien quizá me dio esa idea. Y bien, sabía que pasaría toda mi vida leyendo, soñando y escribiendo, y tal vez publicando, pero eso no es importante, no hace parte de un destino literario, pero en fin... yo hice eso. Hice lo posible, no por leer todos los libros, como decía Mallarmé, sino, en fin, para leer los libros que me gustaban. Tuve conciencia de que la lectura debe ser considerada no como una carga, sino como una fuente de felicidad, posible y fácil. Entonces voy a contarles, puesto que estamos hablando de una manera tranquila, espero, mis experiencias personales. Y bien, yo camino por las calles de Buenos Aires, por la Biblioteca Nacional, que dirigí hace un tiempo y que dejé después,y, de pronto, siento que algo va a llegar. Entonces espero. Ese algo llega. Es quizá una fábula, una noción cualquiera, que no concibo de manera clara, pero percibo siempre el comienzo y el fin y después me toca inventar lo que hay entre esas dos cosas. Hago lo que puedo. Después siento que esa idea exige, digamos, un cuento, un poema, un ensayo. Eso me es revelado después(...)
(...)Pero, a veces, mi punto de partida fue un texto cualquiera, ya que, entre las experiencias humanas, quizá una de las más bellas, una que asegura la felicidad de una cierta manera, es, como lo sabemos todos, la lectura. O, como decía Emerson, otro gran poeta: la poesía nace de la poesía; o, lo que yo dije anteriormente: la poesía nace del lenguaje, pues cada lenguaje es una manera de sentir el mundo, cada lenguaje es una literatura posible, incluso si no llega a serlo. Y bien, ésa es para mí otra manera de la creación poética(...)
(...)Y además hay otra cosa: cada vez que escribí sentí la emoción, la emoción de mi vida: yo creo que no se puede escribir sin emoción. sin pasión. La idea de la poesía como chorro de palabras es una idea del todo errónea, yo creo, una idea falsa. Y además. cuando uno ha vivido algo, cuando uno ha sentido algo, en un hombre de letras esto pide una forma (...)
Para lerem com mais detalhe consultem aqui
Para o primeiro post é mais seguro começar com as palavras dos outros! Neste caso, e mesmo que em espanhol ( perdoem-me pelo facto) , achei interessante partilhar algumas ideias do irrepreensível Jorge Luís Borges sobre a criação poética:
"Yo quisiera hablar de mi larga experiencia, mi modesta experiencia. Yo pasé... yo consagré toda mi vida a la literatura. Siempre supe, desde que era un niño, que mi destino sería literario, es decir: yo me veía siempre saturado de libros como en la biblioteca de mi padre, quien quizá me dio esa idea. Y bien, sabía que pasaría toda mi vida leyendo, soñando y escribiendo, y tal vez publicando, pero eso no es importante, no hace parte de un destino literario, pero en fin... yo hice eso. Hice lo posible, no por leer todos los libros, como decía Mallarmé, sino, en fin, para leer los libros que me gustaban. Tuve conciencia de que la lectura debe ser considerada no como una carga, sino como una fuente de felicidad, posible y fácil. Entonces voy a contarles, puesto que estamos hablando de una manera tranquila, espero, mis experiencias personales. Y bien, yo camino por las calles de Buenos Aires, por la Biblioteca Nacional, que dirigí hace un tiempo y que dejé después,y, de pronto, siento que algo va a llegar. Entonces espero. Ese algo llega. Es quizá una fábula, una noción cualquiera, que no concibo de manera clara, pero percibo siempre el comienzo y el fin y después me toca inventar lo que hay entre esas dos cosas. Hago lo que puedo. Después siento que esa idea exige, digamos, un cuento, un poema, un ensayo. Eso me es revelado después(...)
(...)Pero, a veces, mi punto de partida fue un texto cualquiera, ya que, entre las experiencias humanas, quizá una de las más bellas, una que asegura la felicidad de una cierta manera, es, como lo sabemos todos, la lectura. O, como decía Emerson, otro gran poeta: la poesía nace de la poesía; o, lo que yo dije anteriormente: la poesía nace del lenguaje, pues cada lenguaje es una manera de sentir el mundo, cada lenguaje es una literatura posible, incluso si no llega a serlo. Y bien, ésa es para mí otra manera de la creación poética(...)
(...)Y además hay otra cosa: cada vez que escribí sentí la emoción, la emoción de mi vida: yo creo que no se puede escribir sin emoción. sin pasión. La idea de la poesía como chorro de palabras es una idea del todo errónea, yo creo, una idea falsa. Y además. cuando uno ha vivido algo, cuando uno ha sentido algo, en un hombre de letras esto pide una forma (...)
Para lerem com mais detalhe consultem aqui
Vou ser poeta
- Vou ser poeta - disse uma vez, e levantou os olhos, de cabeça inclinada para o lado.
Contemplava o mar, as suas madeixas louras ondulavam no vento quente, debaixo das pálpebras semicerradas observava atentamente o horizonte. A ama abraçou-o, apertou a cabeça dele contra o peito. E disse:
- Não, vais ser soldado.
- Como o pai? - a criança abanava a cabeça. - O pai é também poeta, não sabias? Pensa sempre noutra coisa.
- Sándor Márai, As velas ardem até ao fim
Contemplava o mar, as suas madeixas louras ondulavam no vento quente, debaixo das pálpebras semicerradas observava atentamente o horizonte. A ama abraçou-o, apertou a cabeça dele contra o peito. E disse:
- Não, vais ser soldado.
- Como o pai? - a criança abanava a cabeça. - O pai é também poeta, não sabias? Pensa sempre noutra coisa.
- Sándor Márai, As velas ardem até ao fim
Busque Amor novas artes, novo engenho - RR
Como exercício apenas - tal como 'posts' anteriores - tento responder ao desafio da Ana Luísa Amaral e escrever um soneto. Como creio que este exercício é para 4ª feira próxima, coloco-o no 'blog'. Ficamos à espera de outras "propostas"
Busque Amor novas artes, novo engenho,
que eu já não tenho forças p’ras buscar
O amor ardente que por ti tenho
amarra-me as mãos, seca-me o falar
E de cada vez que por ti venho
vou-me embora, quando quero ficar
E já nem as esperanças mantenho
de amanhã, por ti, de novo voltar
Porque sei que te perco se abrir
ou se não abrir o meu coração
tanto faz, vou-me sempre desgraçar
Mas em vez de me decidir partir
continuo a viver nesta aflição
se viver, se lhe poderá chamar
RR
Busque Amor novas artes, novo engenho,
que eu já não tenho forças p’ras buscar
O amor ardente que por ti tenho
amarra-me as mãos, seca-me o falar
E de cada vez que por ti venho
vou-me embora, quando quero ficar
E já nem as esperanças mantenho
de amanhã, por ti, de novo voltar
Porque sei que te perco se abrir
ou se não abrir o meu coração
tanto faz, vou-me sempre desgraçar
Mas em vez de me decidir partir
continuo a viver nesta aflição
se viver, se lhe poderá chamar
RR
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Busque Amor novas artes novo engenho,
Sonetos
domingo, 13 de abril de 2008
Numa mensagem anterior, dava os parabéns ao Renato pelos textos -- e pelo blogue, é claro, que agradecia! Essa tentativa de mensagem não resultou: sou ainda ignorante nisto de blogues, e, como vêem, sai tudo com o mesmo tipo de letra, nem itálicos consigo fazer... Ficam agora aqui, repetidos e visíveis (espero), os parabéns. E obrigada.
Sobre a musa
Pois, eu concordo com o Renato, mas que, secularizada ou recusada, ela continua a dar jeito como pretexto para a escrita, ah, isso continua! Seguem dois poemas:
“O problema da musa”
Hoje, pergunto o que fazer com a musa?
Vejo-a sentada no sofá, com uma revista na mão,
como se estivesse à espera de entrar
para a consulta; e deixo o tempo passar,
sem saber se a chame ou se a deixe em paz, com
a sua revista, enquanto acabo o poema. No entanto,
à medida que escrevo, a dúvida instala-se: e se ela
estivesse comigo, se as suas mãos pousassem nos
meus ombros, e os seus lábios respirassem com força
para cima de mim, seria outro este poema? Que
desejo o percorreria, ou a que rosto ausente o verso
daria forma, sob a sua inspiração? Devagar, sem
fazer barulho, deixo a página e espreito-a: a sua mão
disfarça um bocejo; e fecha os olhos, como
se o sono a dominasse. Então, prefiro
não a acordar; e acabo o poema sem ela, esperando
que venha ter comigo, num outro dia.
Nuno Júdice
NEM TÁGIDES, NEM MUSAS
Nem tágides nem musas:
só uma força que me vem de dentro,
de ponto de loucura, de poço
que me assusta,
seduzindo
Uma fonte de fios de água
finíssima
(raio de luar a mais
a secaria)
Nem rio nem lira
nem feminino grupo a transbordar:
só o que herdei em força não herdada,
em fonte onde o luar
não está -
Ana Luisa Amaral
Pois, eu concordo com o Renato, mas que, secularizada ou recusada, ela continua a dar jeito como pretexto para a escrita, ah, isso continua! Seguem dois poemas:
“O problema da musa”
Hoje, pergunto o que fazer com a musa?
Vejo-a sentada no sofá, com uma revista na mão,
como se estivesse à espera de entrar
para a consulta; e deixo o tempo passar,
sem saber se a chame ou se a deixe em paz, com
a sua revista, enquanto acabo o poema. No entanto,
à medida que escrevo, a dúvida instala-se: e se ela
estivesse comigo, se as suas mãos pousassem nos
meus ombros, e os seus lábios respirassem com força
para cima de mim, seria outro este poema? Que
desejo o percorreria, ou a que rosto ausente o verso
daria forma, sob a sua inspiração? Devagar, sem
fazer barulho, deixo a página e espreito-a: a sua mão
disfarça um bocejo; e fecha os olhos, como
se o sono a dominasse. Então, prefiro
não a acordar; e acabo o poema sem ela, esperando
que venha ter comigo, num outro dia.
Nuno Júdice
NEM TÁGIDES, NEM MUSAS
Nem tágides nem musas:
só uma força que me vem de dentro,
de ponto de loucura, de poço
que me assusta,
seduzindo
Uma fonte de fios de água
finíssima
(raio de luar a mais
a secaria)
Nem rio nem lira
nem feminino grupo a transbordar:
só o que herdei em força não herdada,
em fonte onde o luar
não está -
Ana Luisa Amaral
sexta-feira, 11 de abril de 2008
Eu não sou eu nem sou o outro
Não resisto a enviar isto, pois o pequeno poema do M.S. Carneiro foi um dos que nos foi sugerido pela Ana Luísa Amaral na última sessão da oficina. Uma pequena variação em dó maior, que escrevi há muitos anos (quantos?) a partir de um dos muito poucos poemas que sempre soube de cor, de um dos poetas de que mais gosto.
Novas Definições
Novas Definições
Eu não sou eu nem sou o outro,
sou qualquer coisa de intermédio:
pilar da ponte de tédio
que vai de mim para o Outro.
( Em "Indícios de Ouro" de M.S.Carneiro)
Sob o Eu que eu sou, não sendo
há pontes, que só eu quero passar
O Eu que eu sou, temendo
agarra-me e obriga-me a ficar
e Aquele que nunca quis ser.
Vou de mim para o Outro
mas regresso antes de ser
estreitas, mas atravesso
Ao Eu que atrás deixei
entediado, eu regresso
cruzo as pontes à procura
Depois de não ter encontrado
regresso, já noite escura
Oh! quem me dera regressar
viajar, só de mim para mim,
deste tédio fim encontrar
e esquecer-me de onde vim...
Afinal existem ou não Musas?
As musas
Afinal onde é que estão
as musas, se é que existem?
Estão no céu, no mar, no chão?
Será que ainda subsistem?
Desculpem lá a franqueza
mas já não somos meninos
São histórias de certeza
a lembrar os gambozinos
Se as chamam, não é à toa
não chamam homem bruto
Nada como mulher boa
para vender um produto
Renato Roque, 11 Abril 2008
Afinal onde é que estão
as musas, se é que existem?
Estão no céu, no mar, no chão?
Será que ainda subsistem?
Desculpem lá a franqueza
mas já não somos meninos
São histórias de certeza
a lembrar os gambozinos
Se as chamam, não é à toa
não chamam homem bruto
Nada como mulher boa
para vender um produto
Renato Roque, 11 Abril 2008
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