domingo, 13 de abril de 2008

Sobre a musa

Pois, eu concordo com o Renato, mas que, secularizada ou recusada, ela continua a dar jeito como pretexto para a escrita, ah, isso continua! Seguem dois poemas:


“O problema da musa”

Hoje, pergunto o que fazer com a musa?
Vejo-a sentada no sofá, com uma revista na mão,
como se estivesse à espera de entrar
para a consulta; e deixo o tempo passar,
sem saber se a chame ou se a deixe em paz, com
a sua revista, enquanto acabo o poema. No entanto,
à medida que escrevo, a dúvida instala-se: e se ela
estivesse comigo, se as suas mãos pousassem nos
meus ombros, e os seus lábios respirassem com força
para cima de mim, seria outro este poema? Que
desejo o percorreria, ou a que rosto ausente o verso
daria forma, sob a sua inspiração? Devagar, sem
fazer barulho, deixo a página e espreito-a: a sua mão
disfarça um bocejo; e fecha os olhos, como
se o sono a dominasse. Então, prefiro
não a acordar; e acabo o poema sem ela, esperando
que venha ter comigo, num outro dia.

Nuno Júdice


NEM TÁGIDES, NEM MUSAS

Nem tágides nem musas:
só uma força que me vem de dentro,
de ponto de loucura, de poço
que me assusta,
seduzindo

Uma fonte de fios de água
finíssima
(raio de luar a mais
a secaria)

Nem rio nem lira
nem feminino grupo a transbordar:
só o que herdei em força não herdada,
em fonte onde o luar
não está -

Ana Luisa Amaral

3 comentários:

rui disse...

A conceptualização não é, parece-me, um assunto fácil. E, por isso mesmo, tem sido vista ao longo da história em diferentes perspectivas. Hoje, depois de passarmos pelo iluminismo, e com a lavagem cerebral das filosofias positivistas, vemos as coisas de uma forma que Camões não via. E talvez, talvez, a musa inspiradora já não seja a mística forma de outros tempos.
Falando na primeira pessoa, não sou crente, nem num Deus em que a maioria acredita... Porém, acredito em musas e inspirações ou mesmo expirações se assim lhe quiserem chamar.
Não é essa inspiração, afinal, que nos faz viver cada um dos nossos dias? E fazer coisas belas? E somar números e quadros e raizes quadradas? E dissecar uma carta comercial aborrecida por pontos e vírgulas e pontos e vírgulas? Eu quero acreditar na inspiração... e, por isso, acredito...

A. Roma disse...

Não será a inspiração o canal mais livre e subtil da cristalização das nossas experiências pessoais? Não é isso,tambem, que nos permite ser únicos?
A individualidade subconsciente é um enigma, que talvez possa ser resgatada do seu isolamento pelo que chamamos de inspiração.

Quanto às musas...é como diz o ditado: "No creo en brujas pero que las hay...hay!"
De todo o modo penso que deixou de ser plausível o sentido sagrado das musas e por otro lado entendo que faça parte de uma premissa de uma poética pouco atenta à sensibilidade da mulher actual.

rui disse...

Era essa exactamente a expressão que tinha pensado, escrevi, e apaguei do meu post anterior: "no creo en brujas, pero que las hay..." :)