quinta-feira, 1 de maio de 2008

É claro...

À Ana Luísa Amaral

Pelo entusiasmo com que abraçou este projecto de introdução à forma das palavras, à magia do contexto, à combinação de artes.
Pela generosidade de ouvir.
De partilhar e corresponder.
Pela alegria (coisa imensa).
Por todos os mundos que entreabre.

E por estar disposta a tornar.

Hoje e agora, com especiais votos de melhoras.
E um abraço grato.


Alegria da escrita

Para onde corre esta corça escrita pela mata escrita?
Beber da água escrita
que reflectirá o seu focinho como o papel químico?
Porque levanta a cabeça, ouvirá algo?
Sobre as quatro patas pela realidade concedidas,
debaixo dos meus dedos, apura o ouvido.
A palavra silêncio vai farfalhando no papel
e afastando
os galhos pela palavra “bosque” suscitados.


Por cima da folha branca, agacham-se para saltar
letras que se podem dispor mal,
frases que acuam,
das quais não escapa.


Numa gota de tinta há vários
caçadores de olhar franzido
prestes a correr caneta abaixo,
cercar a corça e fazer pontaria.

Não sabem que estão fora da vida real,
que neste preto no branco há outras leis.
Um pestanejar dura tanto quanto eu queira,
posso seleccioná-lo em pequenas eternidades
cheias de balas imobilizadas no ar.
Se eu assim dispuser, nada te acontecerá.
Nem uma folha cairá sem a minha vontade,
Nem um cisco se vergará sob o casco de um ponto final.

Será que há um mundo
cujo destino dependa do meu poder absoluto?
Um tempo acorrentado pelas minhas letras?
Uma realidade que persista por minha ordem?

Alegria da escrita.
Oportunidade de eternização.
Vingança da mão mortal.


Wislawa Szymborska, 1967


Alguns gostam de poesia

Alguns –
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.

De poesia –
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.

Wislawa Szymborska, 1993


É claro

É claro que não dizia o que realmente pensava,
pois os mortais merecem respeito
e os segredos da nossa miséria carnal
não podem revelar-se na fala nem na escrita.
Aos vacilantes, fracos e inseguros foi dada uma tarefa:
erguerem-se dois centímetros acima da sua própria cabeça
e dizerem a quem desespera:
“eu também chorava assim a minha sina”.

Czeslaw Milosz, 2000

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