sábado, 26 de abril de 2008

O plano inclinado

Confesso que há muitos, muitos anos escrevi algumas coisas que se poderiam etiquetar como poemas. Mas isso foi há muito e desde aí, se tem havido alturas da minha vida em que escrevo, mais ou menos, tem sido sempre em prosa, ainda que alguns textos se possam (poderão?) identificar como prosa com alguns contornos poéticos.

É o caso do texto "O Plano inclinado" que não resisti a colocar aqui no blog. Era o primeiro texto de um livro de pequenas histórias, com o mesmo título, que está guardado, porque nunca consegui publicar. O texto poderá fazer sentido aqui porque um dos temas de discussão tem sido a escrita. Porque acontece a escrita e quando acontece. A minha "musa" é afinal um simples plano inclinado. Espero que vos divirta, pois apesar de antigo, continua a ser um dos meus textos de que ainda gosto.


O plano inclinado

Para Galileu Galilei,
por razões óbvias

Passou-me recentemente pelas mãos um velho livro de Física.
Ao folheá-lo, fui atraído pela descrição das experiências efectuadas pelo velho Galileu com o plano inclinado.
Galileu fez escorregar esferas de diversos tamanhos e diversos materiais por um plano inclinado com diferentes inclinações.
Estas experiências permitiram-lhe constatar que :
- a velocidade que as esferas atingiam não dependia do tamanho, nem do material de que as esferas eram feitas;
- a velocidade atingida só dependia da inclinação do plano, aumentando com esta.
Estes resultados obtidos por Galileu, que eu já conhecia, mas que estavam enterrados algures nas profundezas da minha arca de memórias, despertaram em mim uma ideia: se o plano inclinado tinha resultado tão bem, independentemente do material de que eram feitas as esferas, porque não experimentá-lo com palavras.
Experimentei então escrever num plano inclinado com esfero(gráfica). As palavras escorregavam a uma velocidade constante.
Reparei que quando inclinava mais o plano de escrita a velocidade das palavras aumentava até se tornar incontrolável e as palavras caírem em catadupa e se partirem, resultando em textos de pé quebrado e sem sentidos. Tentava então em vão colá-los e reanimá-los.
Ajustei por fim a inclinação do plano para conseguir uma velocidade ideal para as palavras, que me permitisse recolhê-las em ordem numa folha de papel branca, estendida com todo o cuidado ao fundo do plano.
Depois de acertar a inclinação certa, as palavras deslizavam umas após as outras e enchiam depressa a folha de papel.
Mas um outro problema surgiu de imediato: a mudança de folha de papel quando uma ficava cheia.
A princípio eu não era suficientemente rápido e algumas palavras perdiam-se. Tinha de procurá-las uma a uma, pois espalhavam-se pela mesa de trabalho e pelo quarto.
Ainda no outro dia, ao espreitar debaixo da cama, encontrei um ‘espelho’, coberto de cotão. Limpei-o cuidadosamente até de novo reflectir e coloquei-o em cima da cómoda. Utilizo-o todas as manhãs, quando me penteio.
Só depois de muitas tentativas e de muito treino consegui aperfeiçoar a técnica de mudar a folha de papel com a velocidade que a manobra exige.
Acabei também por me tornar exímio na arte de controlar a velocidade das palavras, à custa de pequenas variações da inclinação do plano.
Enquanto me não tornei perito nessa arte difícil da escrita em plano inclinado, tenho de confessar que fazia batota e preenchia o fim da folha com espaços.
Consegui desta forma aumentar a dimensão do meu quarto, à custa de uns quantos espaços perdidos, caídos fora da folha, que depois soprava para o chão.
Hoje, alguns anos depois de treino continuado, perco em média duas palavras por cem folhas de papel A4, sobretudo as palavras esdrúxulas com mais de quatro sílabas, que são as mais complicadas de controlar.
Com essas palavras perdidas estou a criar um reservatório de palavras difíceis, que poderei vir a utilizar no futuro, se as palavras me faltarem. Poderão ser muito úteis, especialmente se pretender vir a escrever poesia modernista.

As folhas cheias de palavras que preenchem este livro foram obtidas com a ajuda de um plano inclinado, calibrado para a língua portuguesa.






6 comentários:

M. disse...

Renato,

Gostei muito. Resta-me dizer que percebo agora a sua "inclinação" para a escrita!

IM disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
IM disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
IM disse...

Caro Renato, algumas questões da física me trazem aqui: para ambas as esferas terem a mesma velocidade é necessário que a superfície não tenha atrito, sendo também necessário considerar que as esferas com diferentes raios apenas deslizam e não rodam (o que significa que não entra em consideração a inércia da própria esfera). É possível imaginarmos que Galileu fez a experiência num plano pouco rugoso e que as esferas também seriam elas próprias muito "lisas", e que o plano era um plano de dimensão pequena, ou seja, naquela época não era possível detectar diferenças infinitesimais no tempo. Se a famosa experiência na Torre de Pisa fosse realizada hoje com os meios actuais seria possível detectar essa diferença infinitesimal no tempo (não esqueçamos a resistência do ar), tal como essas diferenças neste teu plano inclinadao.
Este comentário apenas pretende definir o problema com maior exactidão. Obrigado por nos teres inclinado na direcção desta história, cheia de qualidade e imaginação.

Joana Espain disse...

Vivam

Nem vão acreditar que esta semana estou a dar aos meus alunos o problema que demonstra que as esferas atingem a mesma velocidade (quando rolam sem escorregar) sob um plano inclinado com atrito:) Até me assustei quando vi isto:) Que coincidência!
E eu nem acredito que a Física me esteja a invadir desta forma:(
Também gostei bastante do texto.

Um abraço e até amanhã

Joana Espain disse...
Este comentário foi removido pelo autor.